Sempre que uma orla é iluminada, pode parecer bonito e seguro, mas o lema ‘quanto mais luz, melhor’ precisa ser urgentemente repensado, com revisão do modelo cultural do Brasil, e que o mundo já vem fazendo. Esta foi uma das conclusões dos especialistas em arquitetura, meio ambiente e sustentabilidade costeira e marinha durante o Workshop ‘Fotopoluição e Impactos às Tartarugas Marinhas’, promovido pelo Centro TAMAR/ICMBio e parceiros, dias 12 e 13 de novembro, na Faculdade de Arquitetura da UFBA, em Salvador-BA.
Durante dois dias intensos, representantes do INEMA-BA, das prefeituras litorâneas de Salvador, Mata de São João e Camaçari, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo-CAU e pesquisadores, profissionais e estudantes universitários da UFBA e UNEB, se debruçaram sobre o desafio de como criar projetos urbanísticos que levem em consideração animais, como as tartarugas e aves marinhas, e plantas como as restingas nativas, promovendo a perpetuação dessas espécies e a proteção da orla.
Na abertura o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia-CAU, Thiago Brasileiro, convidou os mais de 90 participantes a repensar a iluminação urbana das cidades litorâneas à luz dessa relação natureza-homem-arquitetura. O Coordenador do Centro TAMAR/ICMBio Joca Thomé destacou a importância de um momento como este em que “União, Estado (BA) e Municípios juntos podem somar esforços com a academia e sociedade organizada, e discutir as melhores alternativas para desenvolver, respeitando a geobiodiversidade”.
O primeiro dia foi marcado por palestras esclarecedoras sobre a problemática da iluminação excessiva de cidades, orlas e praias, e suas consequências não apenas para a vida marinha, mas também para a saúde humana.
O biólogo da Fundação Projeto TAMAR, Paulo Lara apresentou os efeitos da luz para as tartarugas marinhas e citou artigos científicos e soluções discutidas pela ciência para mitigação da poluição luminosa, um tipo de contaminação ambiental que ainda é difícil de “enxergar”. A Bahia – local escolhido para o Workshop – conta com 70% das desovas das espécies cabeçuda (Caretta caretta) e 20% da tartaruga de pente (Eretmochelys imbricata) no país.
Segundo Paulo, o ciclo terrestre do dia e noite é incorporado na evolução da vida em nosso planeta. É senso comum e comprovado cientificamente que alguns animais sentem atração pela luz artificial – chamado tecnicamente de fototaxia (animais) e fototropia (plantas) – atração esta que pode ser tanto positiva quanto negativa, assim a luz artificial tem o potencial de gerar impacto à biodiversidade.
“As tartarugas marinhas são atraídas pelas luzes artificias ao longo das praias, sendo as fêmeas sensíveis e os filhotes “hiper” sensíveis à essas fontes luminosas. As espécies só passaram a enxergar a luz artificial a pouco mais de um século, pois antes disto o que predominava nas noites era o reflexo da luz da lua no mar, que assim brilhava mais que o continente. As tartarugas buscam pistas visuais do mar, que costumava no passado ser mais claro que o continente e esse processo, ao longo da evolução, atuou como uma seleção natural das espécies” explicou Paulo.
A fotopoluição é uma ameaça crítica, cuja solução é o uso racional das luzes, em especial à beira mar. “Costumamos dizer que a melhor lâmpada para a tartaruga marinha é a apagada. A Fundação Projeto TAMAR faz o monitoramento da desorientação dos filhotes de tartarugas marinhas quando esses deixam os ninhos, entre Salvador e a Foz do São Francisco, e já constatamos um aumento da taxa de desorientação em quase 3 vezes”, destacou Paulo. Cerca de 10% dos filhotes hoje sofrem desvios pela iluminação, aumento o risco de predação e ressecamento pelo sol.
Como solução Paulo foi enfático de que é preciso mudar a cultura da luz à beira mar urgentemente, levar informação sobre as cores mais próximas ao laranja e âmbar e a intensidade dessas luzes, popularizar o uso de designers de luminárias mais amigáveis (com anteparo), além de investir na regeneração das restingas, que fazem o papel de proteção da praia contra a poluição luminosa e erosão.
Victor Patiri, da Consultoria Braço Social, em sua palestra destacou os grandes projetos como de portos e outras obras costeiras, assim como empreendimentos imobiliários, e que é possível sim a adequação para que sejam ‘amigos das tartarugas’. “Basta o projeto evitar a dispersão da iluminação (halo/ up light), do interior para o exterior (light transpass), privilegiando a iluminação homogênea e menos direta, assim como sistemas de iluminação inteligentes/ ecoeficientes, cuidando para que superfícies reflexivas não ampliem a dispersão da luz, além da importância do uso da vegetação a favor do projeto”, frisou Victor.
Segundo ele, a RPPN Caruara, criada pela Porto do Açu Operações, e localizada no Rio de Janeiro, conta com arandelas, anteparos, controle de iluminação fragmentado, iluminando apenas o necessário e sem a difusão ampla das luzes por todo a área, além do uso de dimmers – que ligam o foco luminoso apenas com a presença humana no local. “A melhor solução continua sendo desenvolver uma boa planta luminotécnica, um bom projeto”.
A arquiteta especialista em Lightening Design e membro da Dark Sky, Silvia Carneiro, citou exemplos de outros países que já mudaram suas práticas quanto à iluminação pública, como Austrália privilegiando projetos com uso de luzes na tonalidade âmbar, alturas de montagem baixas em áreas públicas e picos de emissão de 605 ao máximo de 700 nanômetros. “Na Flórida existe o seguinte lema: mantenha-o baixo (altura de montagem da luminária), mantenha-o longo (comprimento de onda das luzes), mantenha-o protegido (uso de anteparos e modelos full cut off), referindo-se aos focos luminosos das cidades, e isso tudo aliado a um programa de certificação dos projetos e luminárias”, explicou Silvia.
Segundo ela, o segredo está na política pública e em projetos urbanos focados em poluir menos visualmente as cidades, que estão iluminadas de forma excessiva e cujos impactos de magnitude podem ser constatados a distâncias de até 300km do foco luminoso.
Segundo Silvia a luz tem uma passagem muito rápida no meio líquido. O corpo humano é 70% água e não é diferente. Segundo ela o olho humano é bombardeado com muitas luzes, das cidades, residências, telas (computador, TV, tablet, celular). “Nossa cronobiologia está sendo prejudicada porque as pessoas permanecem cada vez mais tempo acordadas. A noite se transformou em dia. Basta manter tudo aceso. Precisamos mudar essa rota, para nossa saúde”, reiterou ela.
Ion Costa, engenheiro que atua na área de licenciamento da prefeitura de Mata de São João-BA, destacou que o município é um dos principais destinos turísticos do Litoral Norte da Bahia e está inserido na Unidade de Conservação Estadual – APA Litoral Norte; e conta com as o parque Klaus Peters e o Refúgio da Vida Silvestre – REVIS Sapiranga. É na Secretaria de Des. Urbano de Meio Ambiente-SEDUR que é feita a avaliação técnica de projetos; a fiscalização e monitoramento de empreendimentos; e a concessão de licenças ambientais e urbanísticas.
Ion detalhou várias normativas que são consideradas nas análises, como a Lei do SNUC (9.985/00), a Resolução Conama 10/96 e as Portarias Ibama 10 e 11/95. E destacou a Lei Complementar 014/2023 – do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal-PDDM de Mata de São João, que em seus artigos 158 e 167 vedaram a implantação de edificações na faixa de 85,00 metros, contados a partir da linha de preamar; e instituiu a obrigatoriedade de recomposição da vegetação da faixa de 85,00m com vegetação nativa
“Os desafios da prefeitura são muitos como a mudança climática e a variação da linha de costa do município; assim como o controle e uso da ocupação da faixa de praia. Mas estamos avançando com a implementação de sistemas que agilizam as análises dos processos de licenciamento e a fiscalização; investindo em equipamentos para coleta de dados; e nos articulando com os órgãos ambientais das demais esferas; e implementando leis mais restritivas” contextualizou Ion.
Os analistas ambientais do Centro TAMAR/ICMBio Gabriella Pizetta e Erik Santos fecharam o 1º dia de palestras com uma apresentação que fala do papel do Centro TAMAR no âmbito do licenciamento ambiental, já destacando que a Resolução CONAMA 10/1996 vincula o licenciamento à consulta ao Centro Tamar. “A manifestação pode ocorrer sob demanda do órgão licenciador, mas muitas vezes, a consulta não ocorre na etapa inicial do empreendimento, quando os projetos são elaborados e analisados pelo órgão licenciador, mas sim já numa fase muito avançada, o que dificulta a proposição de medidas de mitigação de impactos”.
“Ano a ano vem ocorrendo um aumento no número de manifestações para licenciamento e esse aspecto motivou a elaboração do Guia de Licenciamento – Tartarugas Marinhas, acreditando que a publicação qualificaria melhor os órgãos licenciadores, mas a demanda aumentou significativamente depois da publicação, já em sua 2ª edição”, explicou Gabriella.
Erik Santos destacou que os projetistas relatam dificuldade em encontrar no mercado modelos de lâmpadas que atendam à temperatura mínima de cor e outras medidas de mitigação da poluição luminosa. “Mas pelo que vimos aqui no evento os representantes da indústria indicam que não haveria uma dificuldade em atender à demanda, a partir de pedidos específicos de luminárias e lâmpadas adequadas aos parâmetros ambientais”, reforçou.
“Em algumas situações ocorre a judicialização do empreendimento inadequado, que a partir de uma Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pode ser obrigado a adequar toda a iluminação voltada para a praia, de modo que não venha gerar impactos às tartarugas marinhas nos períodos de desova”, esclarece Erik.
No segundo dia as analistas ambientais Gabriella Pizetta e Patrícia Dittmar conduziram dinâmica de levantamentos de propostas para mitigar a poluição luminosa e seus impactos às tartarugas marinhas, com a construção de um Plano de Ações.
Proposta inicial de um manual foi apresentado ao público, com diretrizes objetivas a serem adotadas para reduzir os impactos da poluição luminosa. A publicação, já em processo de diagramação, recebeu contribuições dos participantes para a melhoria do documento.
O gerente de fábrica da indústria de luminárias G-Light, Joseph Alves, sinalizou a possibilidade de criação de um catálogo de produtos específicos para atender à demanda por luminárias mais amigáveis aos ambientes costeiros, mais sustentáveis e que protejam não apenas tartarugas marinhas, mas também outras espécies da fauna e flora.
Os participantes lembraram a importância de se realizar também um evento específico, voltado para as empresas fabricantes de luminárias, informando sobre a importância desse tema, como mais uma alternativa de construção dessa conscientização no nível macro. Foi ainda pontuada a necessidade de capacitar os profissionais nas prefeituras que analisam esses empreendimentos, assim como foi citada a importância do Conselho de Arquitetura e Urbanismo-CAU fornecer uma lista dos profissionais com qualificação no tema (iluminação), de modo a facilitar a contratação de projetistas qualificados.
Entre os encaminhamentos, destaca-se a finalização do Plano de Ações e a publicação do Guia de Mitigação da Poluição Luminosa e seus Impactos às Tartarugas Marinhas. “Após esses dias reunidos, vemos o quanto a participação foi expressiva, o que possibilitará a entrega de produtos melhores que contribuirão para a redução dos efeitos nocivos das luzes artificiais na biodiversidade, assim como, que a sociedade tenha uma melhor compreensão dos riscos e possa exigir o uso de fontes luminosas menos nocivas para a biodiversidade – tartarugas e aves marinhas, e para a saúde humana”, ao que o Coordenador do Centro TAMAR/ICMBio Joca Thomé a gradeceu a todos.
Participaram do evento a representando da UNEB, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da BA – CAU, da Fundação Projeto TAMAR, Paulo Lara; da Secretaria de Infraestrutura e Obras da Prefeitura Municipal de Salvador-PMS; do INEMA-BA, Jeanne Florence, prefeituras de Mata de São João e Camaçari, além das equipes do Centro TAMAR/ICMBio Sede e da Base Avançada em Salvador-BA.
Fonte: ICMBio