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Comunidades tradicionais caiçaras não comemoram 15 de março

Tamoios News
Rancho caiçara na praia de Barra Seca, Ubatuba. (Foto: Santiago Bernardes)

Instituído por meio de lei em 2016 sem consulta ampla no território, o ‘Dia do Caiçara’ não as representa. “Como cria-se uma data para comemorar a cultura caiçara em um período em que não se pode festejar?”

“Se alguma comunidade específica ou município considerar importante comemorar essa data como um marco, esse dia 15 de março como ‘Dia do Caiçara’ nós entendemos, mas ela foi criada sem consultar todo o território, surgiu no município de Santos e é reproduzida em alguns municípios, sem muita reflexão. 15 de março não é a data que representa a cultura caiçara. Dia do caiçara são todos os dias. Se os caiçaras definirem uma data comum que abarque todos os caiçaras do litoral, deve ser uma data pensada, discutida, que tenha significado para todas as comunidades para que se sintam representadas”, diz Adriana de Souza de Lima, caiçara da comunidade de Guaraú, em Peruíbe, litoral Sul de São Paulo.

Lima integra a Associação de Moradores da Juréia, compõe a Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras, que envolve os caiçaras do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Também representa os caiçaras no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, no Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira e na Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas.

“Quando tomamos conhecimento da aprovação da lei, ficamos preocupados, pois cria um calendário turístico no estado, Baixada Santista, Vale do Ribeira e Litoral Norte, mas na época, o deputado dialogou somente com o município de Santos e não com as diferentes representações no território. Qualquer ação que afete de alguma forma nosso modo de vida e história, temos que ser consultados. Já dialogamos, mas não se avançou para a mudança dessa data”, aponta.

A lei 16.290 de 20 de julho de 2016 instituiu no calendário turístico do estado a “Semana da Cultura Caiçara”, na semana que antecede o dia 15 de março, quando se comemora o Dia do Caiçara. A lei foi sancionada pelo então governador Geraldo Alckmin. A autoria é do deputado Caio França. “Estabelecida através de uma legislação estadual, essa lei não contempla todas as comunidades. Mesmo com a diversidade, nós temos prática cultural e religiosa e questionamos essa data, principalmente por não ter sido discutida com todas as comunidades, ela pode representar alguma comunidade que se considere representativa, mas no todo não representa”, lembra Lima.

Segunda conta ainda, para a maioria dos caiçaras, a data não os representa, é um período de guardar as violas, rabecas, não temos festejo, é o período de Quaresma. “Como cria-se uma data para comemorar a cultura caiçara em um período em que não se pode festejar?”, pergunta.

“Nós caiçaras, sofremos ao longo do processo de colonização uma invisi bilização. É bem recente esse reconhecimento como comunidades tradicionais. O modo de viver caiçara carrega uma ancestralidade muito grande, desde o território que nós nos encontramos, a força de nossos antepassados e reivindicamos reconhecimento, nossos direitos. Nos reposicionamos para não aceitar mais diferentes formas de violência e opressão. Estamos ocupando diferentes espaços para sermos protagonistas de nossas histórias, diálogos dentro e fora das comunidades. Não queremos que falem por nós, não aceitamos mais que em pleno século 21, as coisas aconteçam de cima para baixo em nossas comunidades. Temos conhecimento das legislações que nos protegem, reivindicamos para garantir os direitos”, aponta a caiçara.

Santiago Bernardes, caiçara de Ubatuba, vive atualmente na comunidade tradicional caiçara e quilombola de Camburi, no norte de Ubatuba também se posicionou sobre a data de 15 de março como Dia do Caiçara. Ele é articulador em Ubatuba do Fórum de Comunidades Tradicionais Angra-Paraty-Ubatuba, movimento social que une caiçaras, indígenas e quilombolas e também integra a Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras-CNCTC.

“A data do dia 15 de março não representa uma celebração natural do povo caiçara, ela foi introduzida de forma arbitrária aos nossos costumes, através da lei estadual, 12.290/16, que visava incluir a data no calendário turístico estadual, porém, como sempre ocorre, sem consultar o povo”, aponta Bernardes.

“Um dos costumes da época é justamente guardar o período da quaresma, no qual não se festeja ou comemora nada, em respeito à tradição. Nessa época os músicos guardam seus instrumentos, soltam as cordas e colocam num armário ou bolsa. Os antigos sempre assim fizeram. É como um tempo de reflexão e recolhimento no qual o povo espera a redenção da páscoa, a passagem para um tempo melhor, segundo a fé cristã do povo. Há ainda uma confusão em relação ao ser caiçara, as pessoas pensam que é apenas nascer na praia, no entanto, é muito mais profundo do que isso. Trata-se de uma cultura, de uma relação própria com a natureza, a mata, o mar, com costumes ancestrais como a roça, a pesca, a culinária, a fala, a espiritualidade”, enfatiza o caiçara.

“Com a construção da BR-101, muita gente veio para a praia e muitas pessoas nascem aqui, mas são ubatubenses e não caiçaras, pois não estão ligadas à raiz cultural do povo. São coisas e falas que vão diluindo a cultura do povo com o tempo e uma data como essa, instituída sem o consentimento das comunidades tradicionais caiçaras, reflete anda mais o desconhecimento da cultura e uma apropriação da mesma com objetivos que não traduzem a verdadeira essência de um povo tão explorado historicamente, mas que ainda resiste e mantém suas tradições”, finaliza.

O Coletivo Caiçara também discorda da data, “Já discutimos isso em âmbito estadual através da Coordenação Nacional Caiçara, não há concordância, porque não houve consulta prévia para essa data. É uma época que o caiçara está em quaresma, a cultura caiçara é muito ligada à igreja católica, não se tem como comemorar e a gente não concorda. É uma data que seria para ser especial, fora da quaresma para podermos fazer o fandango, fazer uma festa mesmo”, contou Sabrina Moraes, caiçara de Juqueí, educadora popular nas comunidades tradicionais, membro do Coletivo Caiçara São Sebastião, Ilhabela e Caraguatatuba e da Coordenação Nacional caiçara.

Em Caraguatatuba, o Dia do Caiçara é comemorado no dia 20 de Abril junto do aniversário da cidade, pela lei 550, de 13 de maio de 1996, autoria de Valmir Gonçalves.

Texto: Adriana Coutinho/Tamoios News