Moradores de rua apontam as dificuldades de sobreviver sem a proteção de um teto
Por Raell Nunes, de Ubatuba
Faz mais de seis anos que um grupo, formado por pelo menos 12 pessoas, pode ser encontrado diariamente na Avenida Pacaembu, situada na Estufa I, em Ubatuba. Nesse local eles trocam ideias, consomem bebidas alcóolicas, se ajudam mutuamente e, até prepararem refeições num fogão improvisado. Esses homens e mulheres são um retrato de quem vive nas ruas da cidade.
Carros e motos passam a aproximadamente 40 km/h pelo trecho, levantando poeira nos pertences de Zé Carlos, 32, que literalmente mora no local. Durante o dia e a noite ele costuma ficar deitado em sua cama, sob seu cobertor colorido.
Para não cair na rotina, às vezes, senta no sofá que fica ao lado de seu dormitório improvisado ao relento. Sua casa é a calçada, que fica apenas a um degrau de distância da rua, junto às árvores. Carlos diz que as viu crescer. Quase todos seus familiares estão mortos. Conforme conta, sua única irmã sumiu pelo mundo. “São 12 anos na rua e seis aqui nesse lugar. É muito sofrimento para uma pessoa só”, fala com dificuldade à reportagem do Tamoios News, enquanto enxuga as lágrimas.
Alguns residentes da Estufa I não gostam dos moradores de rua e ligam para a polícia quando eles fazem muito barulho. Outros ajudam como podem, oferecendo pães, sobras de comida e roupas velhas. Ao lado da Av. Pacaembu encontra-se um bairro de classe média alta da cidade, o Parque Viva Mar. Para adquirir uma residência nesta região nobre, o comprador tem de desembolsar, em média, de R$ 250 mil a R$ 800 mil. Cerca de 200 metros separam luxuosos e miseráveis, que não deixam de ter algo em comum: são seres humanos.
A dor de Zé Carlos não se resume em morar na rua, tomar banho em um rio poluído, que passa debaixo de uma ponte na via que ele se abriga, ser desprezado pela sociedade por ser homossexual, ou ficar desnutrido pela má alimentação que tem e o consumo excessivo de cachaça, onde tenta procurar “solução” para os problemas da vida. Ainda há mais sofrimento: Carlos pode ter que amputar o próprio pé direito.
A cama do mendigo, assim como suas unhas com esmalte, está vermelha. No entanto, o vermelho evidente no lugar onde ele se deixa, é de sangue. A seiva vem do seu pé, que está escurecido, infeccionado e até com a presença de micróbios. A grave condição do pé do andarilho surgiu há algum tempo, quando ele estava trabalhando como capinador para conseguir o pão de cada dia. Por um pequeno descuido, atingiu o próprio pé com uma enxada. Como estava sem qualquer proteção nos pês, como bota ou tênis, cortou-se. Foi à Santa Casa, fez um curativo, mas não parou com a bebedeira e nem se cuidou mais.
Luta pela sobrevivência
A luta pela sobrevivência acontece a todo instante. Alguns trabalham recolhendo recicláveis, porém outros vão ao centro da cidade, para serem pedintes insistentes. Quando alguns passam, o mau cheiro exala. Os pés raramente estão calçados e as mãos ficam sujas, com uma crosta preta. Muitos munícipes se assustam com a situação e ajudam com uma moeda. Outros simplesmente desprezam ou nem reparam.
Magro, pele enrugada, barba por fazer, sem camisa nem calçado. Esse é o perfil do morador de rua Francisco Pereira dos Santos, 65. Ele tem um casal de filhos que, conforme relata, não têm conhecimento de sua existência. O idoso há 11 anos mora nas ruas do município. Santos contou que não consegue e não tem mais forças para trabalhar. O seu pior problema são os olhos: está ficando cego. “Eles [médicos de Ubatuba] me mandaram fazer o exame em Caraguá, mas eu não tenho dinheiro. Não enxergo praticamente nada com meu olho esquerdo”.
Muitos dos moradores de rua buscam uma espécie de refúgio na bebida ou nas drogas. Entre eles, a maioria passou por dificuldades ou situações extremas que lhes abalaram psicologicamente e também lhes prejudicaram a qualidade de vida emocional. Os principais pontos de concentração de moradores de rua em Ubatuba são: Praia Grande, Estufa I e Estufa II, Centro (Praça 13 de Maio), Ipiranguinha e Praia do Cruzeiro.
“Eu colho material reciclável. Trabalho na rua, moro na rua, sobrevivo na rua. Não tomo café da manhã, como peixe o dia todo, é o que tem. Vira e mexe eu vou lá no supermercado pedir umas sobras de misturas. Ultimamente não está tendo nada. Com o dinheiro da reciclagem, compro farinha de mandioca ou de milho para mudar o cardápio. Minha mulher está grávida, preciso ser sujeito homem e tomar conta dela. Ela mora na rua comigo também. Vim de São Paulo e estou em Ubatuba há dez anos. Tive sete filhos, um morreu e o resto nem sei onde estão”, desabafou Antônio Carlos, 43 anos.
Um caminho
Há, em Ubatuba, uma casa de acolhimento para moradores de rua. No local, são servidas quatro refeições diárias. Os andarilhos tomam banho, são encaminhados para exames médicos e, quando não possuem documentação, são orientados para providenciá-los. Para aqueles que querem entrar no mercado de trabalho, a casa também os direciona para elaborarem um currículo e tentar encontrar uma oportunidade.
O abrigo tem oito vagas: seis para homens e duas para mulheres. O espaço é pequeno, mas a procura é muito grande. Desde a inauguração, em agosto de 2014, já foram acolhidos 92 moradores de rua. A permanência no local é de três a seis meses. No entanto, existem pessoas que ficam por mais tempo, até um ano. São os casos mais complexos, quando os acolhidos são idosos e não podem trabalhar.
A casa de acolhimento também desenvolve um trabalho de atendimento àqueles que não querem ou não podem ficar residindo no lar. Então, os moradores de rua vão até lá apenas para tomarem banho e desfrutarem das refeições diárias – mesmo assim são separados daqueles que estão acolhidos na moradia.
De acordo com dados da administração do local, no último semestre de 2014, 981 pessoas tomaram banho e se alimentaram no espaço. Em 2015, 4.355 necessitados fizeram uso deste serviço. Já neste ano, 1.236 moradores de rua foram beneficiados pela ação.
A casa de passagem, como é conhecida, fica localizada na rua Hans Staden, n° 58, no centro da cidade. A direção afirma que há monitores 24h. Conforme informou, as portas estão abertas para visitações e doações de cobertores, frutas e legumes, roupas e calçados.
Dos direitos sociais
De acordo com o art.1° da Constituição Federal Brasileira de 1988, que discorre sobre os princípios fundamentais, a cidadania está inclusa no segundo quesito e a dignidade da pessoa humana aparece como o terceiro direito fundamental do homem e da mulher.
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: II – a cidadania, III – a dignidade da pessoa humana”.
Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, especificado no art. 25°, no primeiro parágrafo, toda pessoa tem o direito a um padrão de vida que assegura a si e à sua família os recursos necessários para se viver com dignidade.
“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”.
Ainda citando a Constituição Federal, no entanto, fazendo o uso do art.6°, que diz respeito ao capítulo II, Dos Direitos Sociais, explicando que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, o lazer, a segurança”.