A trajetória de Valdemir Santos Cruz, 48 anos, o Mestre Val, se entrelaça com a de milhares de famílias do sul da Bahia que tiveram a vida marcada pelo colapso da economia do cacau. O fruto, originário da Amazônia e cultivado há milênios pelos povos da floresta, encontrou no século XIX um novo território fértil no sul da Bahia. O cacau prosperou e passou a ser chamado de “ouro negro”, sustentando coronéis, cidades inteiras e uma das regiões mais ricas do país.
Nos anos 1990, porém, esse ciclo foi interrompido. A praga conhecida como vassoura-de-bruxa (Moniliophthora perniciosa), atacou as plantações, deformando galhos e secando lavouras. Em pouco tempo, a produção desabou e a economia regional entrou em colapso. Falências, desemprego e fome empurraram milhares para fora de suas terras, num êxodo silencioso que espalhou famílias baianas por diferentes partes do Brasil.
Entre elas estava Mestre Val, nascido em Ubatã — nome que no tupi-guarani significa canoa forte. Ainda jovem, ele deixou sua cidade natal trazendo consigo a prática da capoeira e a força para recomeçar.
Foi nesse movimento migratório que surgiu a Vila Baiana, formada por dezenas de famílias vindas do sul da Bahia. No início dos anos 2000, a comunidade passou a ser conhecida como Vila Sahy. Foi nesse território que Val plantou raízes e fez da capoeira a sua trincheira de resistência.
“Meu trabalho começou no fim dos anos 1990, início dos anos 2000. Já jogava capoeira desde a Bahia, mas foi aqui que desenvolvi uma visão mais ampla e descobri o potencial dessa ferramenta.”
A infância na beira do rio
O primeiro contato de Mestre Val com a capoeira aconteceu ainda menino, na virada dos anos 1980.
“Meu primeiro contato com a capoeira foi no final dos anos 80, quando eu tinha entre 10 e 12 anos. Naquela época, eu não tinha condição econômica nem social de frequentar aulas. Então, a prática acontecia de forma espontânea, na beira do rio, brincando com outros camaradas. Era uma capoeira de rua: não acadêmica, não formal, não organizada.”
Essa vivência refletia a própria história da capoeira, criada pelos africanos escravizados e mantida viva mesmo sob perseguição dos coronéis e repressão estatal. Durante o Império, sua prática foi proibida, e já na República, o Código Penal de 1890 (artigos 402 a 404) criminalizou os capoeiras, prevendo prisão e trabalhos forçados. Ainda assim, resistiu em becos, terreiros e portos até chegar às mãos de meninos como Val, que improvisavam seus primeiros jogos às margens de um rio.
A potência da capoeira na comunidade
Na Vila Sahy e na vizinha Barra do Sahy, a capoeira ganhou corpo fora das academias. O movimento começou nas ruas, nas varandas dos bares e também na praia, onde, nos fins de semana, Mestre Val e seus companheiros se apresentavam para turistas, afirmando a capoeira como identidade cultural e resistência popular.
“Chegou um momento em que eu entendi a potência da capoeira. Dentro de uma comunidade de extrema vulnerabilidade, percebi que ela poderia ser o carro-chefe para liderar movimentos sociais. A capoeira é ferramenta de transformação e inclusão social, da forma que eu poderia me apropriar para fazer as coisas acontecerem.”
Mestre Val participou da formação de coletivos e associações que marcaram a história da comunidade: o Esporte Clube Vila Baiana, a Associação Atlética da Vila Baiana, a Amovila – Associação de Moradores da Vila Sahy, e posteriormente o Instituto Verdescola. Hoje, segue como mestre na Escola de Capoeira Raiz Negra – Núcleo Barra do Sahy, onde ministra aulas voluntárias.
O impacto desse trabalho é nítido: de cada dez jovens e adolescentes da comunidade, oito passaram por suas aulas. Mais do que formar capoeiristas, o objetivo sempre foi formar cidadãos, transmitir valores e fortalecer a autoestima coletiva.
“Todos que tiveram uma vivência com a capoeira receberam benefícios e mudanças em suas vidas. O intuito não foi formar capoeiristas, e sim cidadãos. O mais importante é que cada um levasse consigo seus aprendizados e o seu desenvolvimento.”
A capoeira de Val se tornou espaço democrático e plural, reunindo crianças, jovens, adultos e idosos, moradores antigos e recém-chegados ao Litoral Norte. Um trabalho gratuito e voluntário, sustentado com apoios pontuais e com o suporte fundamental do FUNBEA – Fundo Brasileiro de Educação Ambiental, que fortalece e ajuda a manter vivo o trabalho do Mestre Val na comunidade.
Da tragédia à reconstrução
A tragédia de 2023 devastou a Vila Sahy e marcou um ponto de virada para Mestre Val. A capoeira, mais uma vez, mostrou seu valor como ferramenta de união, resistência e fortalecimento coletivo.
“Com a tragédia, a capoeira mostrou seu valor mais uma vez. Foi ferramenta de fortalecimento, de união e de resistência. Todos os nossos coletivos se colocaram à disposição, ajudando da melhor forma possível. É a partir da dificuldade que se fortalece um povo, um movimento e que se constrói um legado.”
A partir dali, Val deixou de ser apenas o mestre da roda para se consolidar como liderança comunitária e voz política. Mobilizou alunos, ex-alunos, moradores e parceiros de outras regiões, transformando a capoeira em um movimento maior: uma luta por dignidade e humanidade. Seu prestígio construído em 25 anos de trabalho voluntário o legitimou como mestre respeitado e articulador de um projeto comunitário que ultrapassa as fronteiras da Vila Sahy.
A Varanda de Angola
Da necessidade de ter um espaço próprio nasceu a luta pela Varanda de Angola, hoje reconhecida como ponto de cultura.
“Ficou cada vez mais clara a necessidade de a capoeira ter sua casa, sua referência. Reinauguramos a Varanda de Angola, um espaço aconchegante, que é a Casa da Capoeira, a Casa da Cultura Afro-Brasileira. Um lugar para a prática e para a diversidade da cultura popular brasileira, tendo a Capoeira Angola como mãe e ponto de partida.”
Além da Varanda de Angola, Mestre Val também levou a capoeira a outros espaços da região. Ele ministrou aulas no Esporte Clube Barra do Sahy e em Boiçucanga, no Escambau Cultural, ampliando o alcance do seu trabalho comunitário e reforçando a capoeira como ferramenta de convivência e transformação social.
O encontro e a memória viva
O encontro que marcou a reinauguração da Varanda de Angola não foi apenas a entrega de um espaço físico, mas um ato de memória, de reencontro e de reafirmação da cidadania.
“Esse encontro foi para trabalhar a cidadania, para fortalecer o cidadão como sujeito de luta e liderança. O ideal era que fizéssemos algo para cuidar de nós mesmos, para melhorar nosso dia a dia.”
Durante os dias de atividades, a roda reuniu gerações distintas e reafirmou a essência da capoeira como espaço de convivência e construção coletiva.
“Foi especial rever os companheiros, os amigos, os mestres mais velhos e os mais novos, que chegaram ansiosos, com sede de beber da fonte. Esse encontro marcou um momento de construção.”
Por jornalista Poio Estavski