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Supressão do jundu: crime ambiental, utilidade pública, segurança ou descaso com o meio ambiente?

Tamoios News
Jundu - Imagem/Tamoios News

Na manhã nublada de quinta-feira (9), o barulho do mar se misturou ao ronco dos tratores. As pás avançaram sobre o verde rasteiro do jundu, revirando raízes e areia. Em poucas horas, a paisagem da Praia do Porto Grande, em São Sebastião, já não era a mesma.

O que, até ontem, era vegetação nativa protegida como Área de Preservação Permanente (APP) amanheceu tomada por máquinas da própria prefeitura. A operação foi executada com base na Autorização nº 0004/2025, no Processo Administrativo nº 25.006/2025, assinada pelo secretário municipal de Meio Ambiente, que liberou a supressão de 580,09 m² de restinga, classificada como escrube em estágio inicial. A justificativa foi abrir passagem para embarcações da Defesa Civil e apoio à Escola Municipal de Vela.

O parecer técnico da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, datado de 8 de outubro de 2025, enquadrou a obra como utilidade pública — condição prevista no artigo 8º, parágrafo 1º, do Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/2012), que permite intervenções em vegetações protetoras de dunas e restingas apenas quando há comprovada necessidade pública e com compensação ambiental equivalente.

O próprio laudo reconhece que a área está dentro da faixa de 300 metros da linha de preamar máxima, limite que a Resolução CONAMA nº 303/2002 define como APP, por abrigar vegetação fixadora de dunas e restingas. A norma continua em vigor após decisão do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu sua revogação em 2020.

A execução, entretanto, ocorreu por licenciamento no âmbito municipal, respaldado na Deliberação CONSEMA nº 01/2024, que permite aos municípios paulistas habilitados licenciar atividades de impacto local. São Sebastião consta entre os habilitados — o que reacende o debate sobre o autolicenciamento, quando o poder público atua ao mesmo tempo como proponente, licenciador e fiscal da própria obra.

Embora o procedimento seja legal, especialistas alertam que ele pode gerar conflito de interesse e fragilizar o controle ambiental se não houver transparência e revisão técnica independente.

 

 

Ilhabela: a fala que virou processo

Em maio de 2023, o prefeito de Ilhabela, Toninho Colucci (PL), foi notificado pelo Ministério Público, apenas por dizer que “tirassem um pezinho por dia, após reclamações de moradores sobre a invasão do jundu nas praias do arquipélago.

Segundo reportagem do g1 Vale do Paraíba e Região publicada em 4 de maio de 2023, o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente – Gaema, abriu investigação por possível incitação a crime ambiental, com base na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998).

A declaração gerou grande repercussão e acabou se tornando um caso emblemático da rigidez da legislação ambiental. Ambientalistas reagiram com dureza, e o prefeito argumentou ter sido mal interpretado. Embora não tenha havido ação de supressão, o custo político foi alto, e o episódio resultou em ação civil pública por dano moral coletivo.

Caraguatatuba: restauração, manejo — e um ponto sensível

A cerca de 40 quilômetros dali, Caraguatatuba optou por outro caminho. Em setembro de 2025, o município iniciou uma nova fase do Programa de Recuperação de Vegetação de Praias – Jundu, com manejo e poda do marmeleiro-da-praia (Dalbergia ecastaphyllum) na orla do bairro Aruan.

A ação prevê o cercamento de áreas, coleta de plântulas, produção de mudas e manutenção contínua. Segundo nota da Prefeitura, o objetivo é revitalizar a orla e favorecer a vegetação rasteira nativa, que ajuda a conter a erosão e proteger o ambiente costeiro.

O ponto de controvérsia está justamente na espécie escolhida para o manejo. O marmeleiro-da-praia é nativo da restinga brasileira e descrito por estudos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) como fixador de dunas e essencial para o equilíbrio ecológico da faixa costeira.

Remover ou podar uma espécie nativa em nome da restauração, sem comprovação técnica, pode ser um equívoco — especialmente quando o manejo tem como justificativa apenas a limpeza estética da praia.

Ubatuba: corte na restinga e reação imediata

Em 19 de junho de 2024, a Prefeitura de Ubatuba foi acusada de cortar a restinga da Praia de Itaguá, sob a justificativa de “segurança pública”.

O  biólogo José Ataliba Mantelli Aboin Gomes presenciou a cena e interrompeu a ação, ao ver funcionários da prefeitura cortando marmeleiros-da-praia — vegetação nativa plantada anos antes pelo grupo Tamoio Ubatuba.

O secretário municipal de Meio Ambiente, Guilherme Arantes, afirmou que o serviço foi realizado para “aumentar a visibilidade e segurança” da área. Após repercussão negativa, o trabalho foi suspenso e o material removido.

O episódio colocou Ubatuba no mesmo debate que atinge seus vizinhos: até que ponto uma ação local, amparada em alegações de segurança, pode desrespeitar as regras que protegem ecossistemas inteiros?

O que diz a lei

Pela Lei Federal nº 12.651/2012 (Código Florestal), a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente (APP) só é permitida em casos de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, mediante justificativa técnica, autorização do órgão competente e compensação equivalente.

O parágrafo 1º do artigo 8º determina que, quando se tratar de vegetação protetora de nascentes, dunas e restingas, a supressão só pode ocorrer em casos de utilidade pública.

A Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006) reforça que mesmo a vegetação em estágio inicial de regeneração só pode ser suprimida mediante autorização regular, estudos técnicos e compensação ambiental proporcional.

A Resolução CONAMA nº 303/2002 continua em vigor e define como APP toda a faixa de 300 metros a partir da maré alta, independentemente do estágio de regeneração.

Por fim, a Deliberação CONSEMA nº 01/2024, válida em São Paulo, autoriza municípios habilitados — como São Sebastião e Ubatuba — a conduzirem licenciamento ambiental de impacto local, o que tem alimentado o debate sobre autolicenciamento e seus riscos.

Entre o mar e o papel

Enquanto Caraguatatuba poda e planta, Ilhabela apenas menciona, São Sebastião devasta e Ubatuba suprime, quatro municípios, quatro interpretações da Lei  e uma mesma vegetação no centro do conflito.

O “jundu”essa vegetação rasteira que amarra a areia e abriga o vento e as águas do mar tornou-se espelho das contradições do litoral norte Paulista.

E  uma pergunta que ressoa no som das ondas aos promotores do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente do Litoral Norte: A supressão do jundu é crime ambiental, utilidade pública, segurança ou apenas um descaso ambiental?

Poio Estaviski/Tamoios News