Atualmente, ele vive embaixo de uma ponte, na praia do Cruzeiro e tem como companhia dois cães e vários livros
Por Raell Nunes, de Ubatuba
Sidney Tadeu Thomazini Camargo veio de São Paulo para Ubatuba há sete meses. Ele diz que morar na capital não era ruim, mas não tinha muita qualidade de vida. Aos 50 anos, seguiu para Ubatuba, em busca de receber uma herança e ter mais conforto na terceira idade. Os planos não deram muito certo e hoje ele vive nas ruas da cidade litorânea. Precisou deixar muitas coisas para trás nesse tempo nas ruas, mas de uma coisa não abriu mão: o gosto da leitura.
Sempre que tem tempo lê revistas, jornais e livros. Afirmou já ter lido mais de 3 mil livros. Segundo conta, sua mãe biológica faleceu aos 18 anos, quando ele tinha quatro meses. Esse trauma sempre intrigou o morador de rua.
Ele foi casado e tem dois filhos: um de 24 anos e outro de 22. Segundo comentou, um dos filhos é dono de uma marcenaria em Itapecerica da Serra, no interior de São Paulo, e o outro é contador.
Quando se separou da mulher, com a qual fora casado por 19 anos, começou a morar na casa da mãe adotiva.
Conforme explicou, hoje ela está com 70 anos e é engenheira química aposentada. Foi ela quem cuidou dele boa parte da vida, mas não aceitava certas situações. Camargo diz ter problemas com o alcoolismo. A mulher que o adotou implicava com o consumo diário de bebidas, por isso decidiu sair de casa e acabou vindo ao litoral, chegando à situação de rua.
Ele afirmou que ainda bebe, além de ser fumante. Apesar disso, diz esperar um futuro melhor. Tirando um cigarro do maço, acendendo e tragando, o homem confessou que nunca precisou morar na rua. De mais a mais, ele dá graças a Deus de não estar vivendo como os mendigos da grande metrópole.
“Aqui eu tenho paz e tranquilidade. Ainda bem que não estou perto dos usuários de drogas de São Paulo, aquele trânsito doido, aquela cobrança. Não tem mais condições. Quero um terreno pra construir ou trabalhar de caseiro”, disse enquanto acariciava um de seus animais, que fazem companhia e dividem o espaço embaixo de uma ponte, na praia Cruzeiro.
O velhinho dos cachorros
Para tentar se livrar um pouco da solidão, o morador de rua adotou dois cachorros. Seus bichos têm nome e sobrenome: Chiquinho Magrelo e Batatinha Gordinha. Por causa dessa dedicação aos animais, ele ficou conhecido como o “velhinho dos cachorros”.
Há cinco meses ele se fixou embaixo da ponte e diz não sentir frio de dia, nem à noite. O homem contou que certa vez uma ressaca do mar invadiu sua casa improvisada.
Ele afirmou que não quer continuar vivendo sob a ponte, mas que já foi à abrigos e não ficou, por não aceitarem seus cachorros. Sidney Camargo fala que não vive sem seus amigos. Com um cesto na bicicleta, o velhinho dos cachorros leva seus animas para tratá-los na ONG Alma Vira-Lata.
Itinerário
Olhando carros perto de um shopping no Itaguá e tomando banho num posto de gasolina, o velhinho dos cachorros compra álcool para fazer suas refeições improvisadas.
Mostrando um pouco de orgulho, confessou que não gosta de assistencialismo ou de pedir e não dar algo em troca. “Eu sou a favor da lei de ação e reação: você faz e recebe”.
Falando e fumando mais um cigarro, disse ter todos os documentos e cumprir obrigações. Limpar a praia e as imediações do ponto onde vigia carros, por exemplo.
“Tem um pessoal que gosta de mim e me ajuda. Eles estão vendo um lugar para eu ficar de caseiro, é o que eu mais quero. Para eu poder me estabelecer, porque eu não tenho intenção nenhuma de voltar à capital”.
Camargo contou que sempre que pode trabalhou. Já foi gerente de vendas por oito anos, deu aulas de artesanato em uma entidade, entre outros serviços. “Eu sei trabalhar. O que não faço é roubar, matar e tirar as coisas dos outros”.
Ponte literária
Há livros por toda parte no abrigo momentâneo de Camargo. Ele lê jornais, revistas e livros com frequência. Em relação à literatura, afirmou que leu mais de 3 mil livros no decorrer de sua vida.
“Se eu for contar os livros que já li, pode colocar na conta uns 3 a 4 mil livros. Gosto muito de livros espíritas. Não tenho religião, mas gosto muito. Zíbia Gasparetto e J. W. Rochester são alguns”, comentou.
Além dos espíritas, o leitor fala de nomes da literatura com facilidade, tais como: Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, entre tantos.
Se arriscando como crítico literário, explicou que o bom livro tem que ter diálogos envolventes, mesclando e se encaixando com sutileza à narrativa do autor. Conforme aponta, quando a história tem linguagem atraente, como nas obras de Agatha Christine, qualquer um consegue entrar no mundo no escritor.
Dando dicas aos leitores, o morador de rua falou que para memorizar os personagens, principalmente os estrangeiros, é preciso anotá-los num papel. Em suas palavras, isso facilita quando a trama se desenrola, pois anotando fica mais fácil saber quem é quem.
De acordo com o morador de rua, em uma obra literária é fundamental que o personagem principal seja envolvente e empolgante ao mesmo tempo. Questionado sobre esse apetite literário, esclareceu: “quando eu morava em São Paulo o meu maior divertimento era ir à biblioteca. Eu ia ao centro cultural, sentava lá e ficava lendo. Ficava o dia todo”.
Não conseguindo ler apenas um livro e depois mais um, o homem que mora na praia do Cruzeiro falou que pega um e depois pega outro, porque se ficar em um só cansa.
No momento ele está lendo O Homem que Calculava, de Malba Tahan; O Segredo do Bilhete, de Manuel Lobato; O Milagre da Santa Chorona, de Roberto Freire; Prometeu Acorrentado, Ésquilo e O Estrangeiro, de Albert Camus.