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Manguezal sob pressão: a resistência caiçara do Araçá

Tamoios News
Humberto Messias, caiçara de São Sebastião. Foto: Ed Davies

São Sebastião é uma das cidades mais antigas do Brasil, marcada por disputas desde os tempos coloniais. Hoje, o foco está no Mangue do Araçá, um dos últimos remanescentes do litoral norte, que resiste à pressão da urbanização e da política. Baseado em matéria da jornalista Fernanda Biasoli, publicada pelo FunBEA, no centro dessa história está Humberto Messias, caiçara que há 15 anos transforma o plantio de mudas em ato de resistência — agora reconhecido pelo Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA), que levará sua causa até a COP30.

O Mangue do Araçá é mais que um ecossistema: é parte da história do país, do porto colonial aos conflitos modernos. Hoje, é também prova de que a resistência pode estar no gesto diário de um homem que insiste em plantar. Este artigo foi escrito com base na matéria da jornalista Fernanda Biasoli, publicada pelo FunBEA.

Um território marcado por disputas

Fundada em 1636, São Sebastião cresceu em torno de um porto natural que movimentava açúcar e cerâmica vindos do interior. A posição estratégica logo atraiu cobiça: no início do século XVIII, corsários franceses ameaçaram a vila, obrigando a Coroa a reforçar as defesas locais.
Três séculos depois, em 1936, começaram as obras do Porto de São Sebastião, inaugurado em 1955. Nas décadas de 1970 e 80, em plena ditadura, a chegada do TEBAR consolidou a cidade como polo petroleiro. Mas a modernização veio com um preço: praias aterradas, dragagens e comunidades caiçaras comprimidas entre o concreto e o mar.

Porto de São Sebastião no ano de 1950

A ciência desmente a morte anunciada

Estudos da USP e da Unicamp, conduzidos no âmbito do Projeto Biota/Fapesp Araçá, revelaram uma biodiversidade vibrante. Foram identificadas mais de mil espécies, 56 novas para a ciência, além de cinco gêneros inéditos e uma nova família. O levantamento apontou ainda 16 espécies ameaçadas de extinção que continuam a habitar a baía.
Esses dados desmontaram narrativas oficiais que chegaram a declarar a área “morta”. Pelo contrário, o Araçá mostra uma capacidade de resiliência rara: é berçário de peixes, sustento para comunidades caiçaras e proteção natural contra a erosão costeira.

Mobilização e justiça

Em setembro de 2015, cerca de 300 pessoas se uniram em terra e no mar para o Abraço ao Araçá, contra um projeto de expansão do porto que previa uma laje de 500 mil m² sobre o manguezal. Dois anos depois, em 2017, a Justiça anulou o licenciamento da obra, considerando insuficientes os estudos de impacto.
Mais recentemente, em abril de 2024, o ex-prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), assinou 16 decretos de desapropriação de imóveis no Araçá, alegando preservação ambiental. A medida, no entanto, foi entendida pelos moradores como uma tentativa de expulsão. O caso está sob inquérito do Ministério Público Federal, após reportagem do Estadão expor a tensão entre prefeitura e comunidade.
Pouco depois, em 5 de junho de 2024, no Dia Mundial do Meio Ambiente, moradores e movimentos sociais replantaram mais de 200 mudas no mangue. Foi a resposta simbólica à ameaça de desapropriação, reafirmando o valor do território para além do discurso oficial.

Humberto Messias, caiçara de São Sebastião. Foto: Ed Davies

O gesto persistente de Humberto

Se mobilizações coletivas deram visibilidade à causa, a rotina solitária de Humberto Messias garante que o Araçá nunca deixe de respirar. Desde 2010, ele planta mudas todos os dias. Desenvolveu uma tecnologia baseada na natureza para fortalecer as plantas: mistura água doce e salgada até que consigam resistir ao ambiente adverso da baía.
Em 2024, esse esforço ganhou reconhecimento nacional, o Movimento Baía do Araçá, liderado por Humberto, foi um dos selecionados pela Chamada Pública Justiça e Educação Climática do FunBEA, que dá apoio para movimentos de educação e justiça climática. O apoio garante recursos, formação e, principalmente, a amplificação de uma voz que até então ecoava apenas na comunidade.
“O que a gente faz aqui não é só para a gente, é para todo mundo. Cada muda de mangue reflete na vida de todo ser humano que respira”, resume Humberto.

Pressões nacionais e riscos globais

Enquanto caiçaras plantam e resistem, em Brasília avançam medidas que fragilizam a proteção ambiental. A PEC 3/2022, conhecida como PEC das Praias, propõe transferir terrenos de marinha para estados e municípios, abrindo margem para privatizações em áreas costeiras. Já o PL 2.159/2021, apelidado de PL da Devastação e aprovado em 2025, flexibiliza o licenciamento ambiental e ameaça ecossistemas frágeis como os manguezais.
O contraste é claro: o mundo inteiro investe na restauração de manguezais como solução climática natural, enquanto o Brasil ainda os expõe a riscos legislativos e especulativos.

Do Araçá a Belém

Em novembro deste ano, o FunBEA estará na COP 30, em Belém, com o credenciamento de organização da sociedade civil observadora na zona oficial de negociação do grande evento do clima. No case territorial do Litoral Norte de SP, o fundo leva a história da Baía do Araçá e da necessidade de financiamento de organizações de base que estão na ponta, e que dificilmente conseguem acessar os grandes recursos do clima. “Nós temos a missão de descentralizar recursos para territórios e comunidades através de seus movimentos e coletivos. Se o dinheiro não chegar na ponta, não haverá inclusão no processo de adaptação climático que é necessário fazer em todo o país”, ressalta Semíramis Biasoli, secretária geral do FunBEA.
O Mangue do Araçá é mais que um ecossistema: é parte da história do país, do porto colonial aos conflitos modernos. Hoje, é também prova de que a resistência pode estar no gesto diário de um homem que insiste em plantar.
E é desse gesto que nasce a ponte entre o local e o global: um caiçara cuidando de um mangue em São Sebastião, cuja voz agora chega às negociações internacionais sobre o clima.

Assista o vídeo do FunBEA: https://www.instagram.com/reel/DDFnY1MP5i5/?igsh=MWE0dHdmYWpzNzNteg%3D%3D

Por jornalista Poio Estavski