São Sebastião é uma das cidades mais antigas do Brasil, marcada por disputas desde os tempos coloniais. Hoje, o foco está no Mangue do Araçá, um dos últimos remanescentes do litoral norte, que resiste à pressão da urbanização e da política. No centro dessa história está Humberto Messias, caiçara que há 15 anos transforma o plantio de mudas em ato de resistência — agora reconhecido pelo Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA), que levará sua causa até a COP30.
Um território marcado por disputas
Fundada em 1636, São Sebastião cresceu em torno de um porto natural que movimentava açúcar e cerâmica vindos do interior. A posição estratégica logo atraiu cobiça: no início do século XVIII, corsários franceses ameaçaram a vila, obrigando a Coroa a reforçar as defesas locais.
Três séculos depois, em 1936, começaram as obras do Porto de São Sebastião, inaugurado em 1955. Nas décadas de 1970 e 80, em plena ditadura, a chegada do TEBAR consolidou a cidade como polo petroleiro. Mas a modernização veio com um preço: praias aterradas, dragagens e comunidades caiçaras comprimidas entre o concreto e o mar.

Porto de São Sebastião no ano de 1950
A ciência desmente a morte anunciada
Estudos da USP e da Unicamp, conduzidos no âmbito do Projeto Biota/Fapesp Araçá, revelaram uma biodiversidade vibrante. Foram identificadas mais de mil espécies, 56 novas para a ciência, além de cinco gêneros inéditos e uma nova família. O levantamento apontou ainda 16 espécies ameaçadas de extinção que continuam a habitar a baía.
Esses dados desmontaram narrativas oficiais que chegaram a declarar a área “morta”. Pelo contrário, o Araçá mostra uma capacidade de resiliência rara: é berçário de peixes, sustento para comunidades caiçaras e proteção natural contra a erosão costeira.
Mobilização e justiça
Em setembro de 2015, cerca de 300 pessoas se uniram em terra e no mar para o Abraço ao Araçá, contra um projeto de expansão do porto que previa uma laje de 500 mil m² sobre o manguezal. Dois anos depois, em 2017, a Justiça anulou o licenciamento da obra, considerando insuficientes os estudos de impacto.
Mais recentemente, em abril de 2024, o ex-prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), assinou 16 decretos de desapropriação de imóveis no Araçá, alegando preservação ambiental. A medida, no entanto, foi entendida pelos moradores como uma tentativa de expulsão. O caso está sob inquérito do Ministério Público Federal, após reportagem do Estadão expor a tensão entre prefeitura e comunidade.
Pouco depois, em 5 de junho de 2024, no Dia Mundial do Meio Ambiente, moradores e movimentos sociais replantaram mais de 200 mudas no mangue. Foi a resposta simbólica à ameaça de desapropriação, reafirmando o valor do território para além do discurso oficial.

Humberto Messias, caiçara de São Sebastião. Foto: Ed Davies
O gesto persistente de Humberto
Se mobilizações coletivas deram visibilidade à causa, a rotina solitária de Humberto Messias garante que o Araçá nunca deixe de respirar. Desde 2010, ele planta mudas todos os dias. Desenvolveu uma tecnologia baseada na natureza técnica caseira para fortalecer as plantas: mistura água doce e salgada até que consigam resistir ao ambiente adverso da baía.
Em 2024, esse esforço ganhou reconhecimento nacional, . O Movimento Baía do Aracá, liderado por Humberto, foi um dos selecionados pelana Chamada Pública Justiça e Educação Climática do FunBEA, que dá apoio financia iniciativas para movimentos de educação e justiça climática. O apoio garante recursos, formação e, principalmente, a amplificação de uma voz que até então ecoava apenas na comunidade.
“O que a gente faz aqui não é só para a gente, é para todo mundo. Cada muda de mangue reflete na vida de todo ser humano que respira”, resume Humberto.
Pressões nacionais e riscos globais
Enquanto caiçaras plantam e resistem, em Brasília avançam medidas que fragilizam a proteção ambiental. A PEC 3/2022, conhecida como PEC das Praias, propõe transferir terrenos de marinha para estados e municípios, abrindo margem para privatizações em áreas costeiras. Já o PL 2.159/2021, apelidado de PL da Devastação e aprovado em 2025, flexibiliza o licenciamento ambiental e ameaça ecossistemas frágeis como os manguezais.
O contraste é claro: o mundo inteiro investe na restauração de manguezais como solução climática natural, enquanto o Brasil ainda os expõe a riscos legislativos e especulativos.
Do Araçá a Belém
Em novembro deste ano, o FunBEA estará na COP 30, em Belém, com o credenciamento de organização da sociedade civil observadora na zona oficial de negociação do grande evento do clima. No case territorial do Litoral Norte de SP, o fundo leva a história da Baía do Araçá e da necessidade de financiamento de organizações de base que estão na ponta, e que dificilmente conseguem acessar os grandes recursos do clima. “Nós temos a missão de descentralizar recursos para territórios e comunidades através de seus movimentos e coletivos. Se o dinheiro não chegar na ponta, não haverá inclusão no processo de adaptação climático que é necessário fazer em todo o país”, ressalta Semíramis Biasoli, secretária geral do FunBEA. dO FunBEA levará cinco representantes da sociedade civil à COP30, em Belém, entre eles um de São Sebastião. Mesmo que Humberto não esteja entre os delegados, sua trajetória será símbolo de uma luta que atravessa séculos.
O Mangue do Araçá é mais que um ecossistema: é parte da história do país, do porto colonial aos conflitos modernos. Hoje, é também prova de que a resistência pode estar no gesto diário de um homem que insiste em plantar.
E é desse gesto que nasce a ponte entre o local e o global: um caiçara cuidando de um mangue em São Sebastião, cuja voz agora chega às negociações internacionais sobre o clima.
Assista o vídeo do FunBEA: https://www.instagram.com/reel/DDFnY1MP5i5/?igsh=MWE0dHdmYWpzNzNteg%3D%3D
Por jornalista Poio Estavski