Que futuro pretendemos deixar para nossos filhos e netos?
Júlio Barboza Chiquetto – Geógrafo e Pesquisador de pós-doutorado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
Ivan Carlos Maglio – Engenheiro Civil, Dr em Saúde Pública e Pós Doutor pelo IEA USP – Centro de Síntese Cidades Globais.
A cidade de São Sebastião até o presente momento não instituiu um Plano de gestão dos resíduos urbanos na cidade conforme requer a legislação estadual e nacional, para orientar a gestão dos resíduos sólidos urbanos. A gestão dos resíduos sólidos urbanos deve incluir a devolução das embalagens aos produtores pela logística reversa, a redução dos resíduos na fonte com a reciclagem e o reuso dos materiais presentes no lixo, para que a porção final dos resíduos a ser tratada seja a mínima possível com sistemas de tratamento final ambientalmente sustentáveis, praticas a serem reforçadas com a própria educação ambiental da população incluindo os turistas que usufruem das belezas naturais da cidade de São Sebastião.
É sabido que determinados tipos de empreendimento apresentam maior risco e impactam a natureza e a sociedade por meio da contaminação ambiental. Infelizmente, diversas atividades intrinsecamente ligadas ao nosso modo de vida e produção (tais como gestão dos resíduos sólidos, transportes, atividade industrial, agropecuária, mineração etc.) têm como subproduto a emissão de poluentes dos mais variados tipos, rotineiramente lançados no ar, água e solo. Essas substâncias poluem os ecossistemas e impactam a flora e a fauna, mas, sem demora, a conta chega também para os seres humanos.
Recentemente, a prefeitura municipal de São Sebastião propôs a implantação de um incinerador de lixo no município de São Sebastião, por meio da implantação de Usina de Tratamento térmico de resíduos sólidos. A proposta da incineração dos resíduos vai contra os princípios da gestão sustentável dos resíduos porque para essa opção quanto mais resíduos forem incinerados pela combustão térmica maior seria a falsa eficiência do incinerador. Essa forma de tratamento dos resíduos tem como resultado submeter a cidade, seus habitantes e a natureza de São Sebastião aos riscos de lançamento de poluentes como o Monóxido de Carbono (CO) e o Óxidos de Nitrogênio (Nox) na atmosfera, trazendo inúmeros riscos ambientais à saúde humana e graves prejuízos ao ambiente e aos ecossistemas naturais.
Além disso, por também gerar dióxido de carbono (CO2), a incineração também conhecida como tratamento térmico de resíduos urbanos domiciliares, vai na contramão de todos os esforços mundiais para mitigação de gases de efeito estufa e consequente redução do aquecimento global e dos impactos dos riscos decorrentes das mudanças climáticas! As cidades brasileiras, como no caso de São Sebastião, e episódios recentes em Angra dos Reis, Paraty e Recife, já vêm sofrendo com o aumento das inundações e de escorregamento de encostas com perdas materiais e mortes, e ainda, como cidade litorânea, há riscos pela subida gradual do nível do mar, ressacas e tempestades.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 4 milhões de mortes anuais ocorram devido aos impactos da poluição do ar no mundo. Há uma enorme bibliografia sobre os impactos da poluição do ar, na forma de gases ou partículas tóxicas, sobre a saúde humana, que vão desde simples incômodos nos olhos até a mortalidade por intoxicação. Da emissão de poluentes até os impactos na saúde, existem diversas etapas que são definidas pelas condições atmosféricas e pelas características populacionais, e até mesmo individuais. Os efeitos prejudiciais à saúde humana causados pelos poluentes do ar dependem tanto da sua concentração (que tende a ser mais alta quanto mais próximo à fonte emissora), mas também de fatores socioeconômicos, que definem a vulnerabilidade socioambiental de cada cidade ou sistema a ser impactado.
Em geral, crianças, idosos e pessoas portadoras de doenças respiratórias (tais como bronquite, asma, rinite etc.) têm sido consideradas as populações mais vulneráveis à poluição do ar. O monóxido de carbono (CO), subproduto de qualquer processo de combustão (como por exemplo, automóveis ou incineradores de lixo), leva ao aumento da incidência e mortalidade por doenças cardiovasculares – dada sua facilidade de se combinar com a hemoglobina do sangue reduzindo as taxas de oxigenação.
Os compostos de enxofre, comuns nas atividades industriais, podem levar à inflamação nos tecidos do pulmão. Os compostos de nitrogênio (NOx), estão também associados à diminuição da função pulmonar, principalmente em crianças, e diversos outros sintomas cardiorrespiratórios. Tanto os poluentes que contém enxofre, quanto os que contém nitrogênio, levam à ocorrência de chuva ácida, que não só danificam a saúde humana e os ecossistemas diretamente atingidos, mas também leva ao transporte desses poluentes por meio da infiltração da água no solo, potencialmente contaminando também os lençóis freáticos.
O ozônio (O3), por ser um gás altamente tóxico, leva desde ao envelhecimento precoce na pele até aumento nos sintomas alérgicos, atingindo principalmente os portadores de doenças respiratórias. Além disso, ele produz queimaduras nos estômatos, estruturas usadas para as trocas gasosas, nas folhas de diversas plantas, potencialmente impactando a produção agrícola até a biodiversidade vegetal. Pesquisas recentes indicam que a poluição de ar, sejam por gases ou partículas, tem impactos até neurológicos.
A literatura científica indica que duas novas categorias devem ser incluídas nos grupos de maior vulnerabilidade: a população de baixa renda e gestantes. A população de baixa renda apresenta maior vulnerabilidade socioambiental como um todo – moram em áreas de risco e mais contaminadas (ex: próximas de complexos industriais), em moradias de baixa qualidade (ou seja, com pouca resistência e isolamento do ar externo, permitindo a entrada de poluentes do ar externo), e em geral, têm menos acesso à saúde. Com relação às gestantes, muitos estudos revelam os impactos na saúde materna, com consequências para o desenvolvimento apropriado de fetos e recém-nascidos devido à exposição à poluição do ar. Alguém ainda consegue se esquecer da tragédia de Cubatão no litoral paulista?
Alguns dos impactos da exposição materna à partículas tóxicas incluem aumento na chance de nascimentos prematuros ou baixo peso ao nascer, que são importantes indicadores de mortalidade infantil. A exposição a partículas finas (PM2,5) é mais prejudicial ainda, pois elas ultrapassam as barreiras do sistema respiratório superior e se depositam direto no pulmão. Elas estão ligadas à ocorrência de câncer e outros problemas graves de saúde.
Em relação aos incineradores, existem ainda, infelizmente, poucas pesquisas. No entanto, elas indicam que eles podem contribuir para a contaminação do solo e vegetação local, principalmente por meio duas classes de poluentes: as dioxinas e os metais pesados. Em países europeus, foi constatado que o leite e produtos agrícolas proveniente de criações de gado na vizinhança de incineradores continha níveis elevados de dioxinas, em alguns casos acima dos limites legais. O contato da pele com o solo contaminado pode ser também fonte de contaminação, ocasionando problemas relacionados ao sistema reprodutivo, imunológico e neurológico. Para mais detalhes, sugerimos a leitura do documento “Incineração e Saúde Humana”, de autoria do Greenpeace, no endereço http://greenpeace.org.br/toxicos/pdf/sumario_exec_health.pdf
Diversos casos na história têm mostrado que o custo da contaminação ambiental é sempre muito alto. Incinerar o lixo é uma prática ultrapassada e que deveria ser descontinuada, e não promovida. Atualmente, políticas de resíduos sólidos devem preconizar a redução na geração do lixo ao invés da sua eliminação por combustão (afinal, prevenir é melhor do que remediar). Além disso, boa parte dos resíduos podem ser reciclada, reaproveitada de alguma maneira criativa, ou simplesmente descartada de forma mais segura, ao invés de ser incinerada, afetando as populações e os ecossistemas locais.
Acima estão descritos os riscos decorrentes dessa opção de implantar um Incinerador de resíduos, em especial numa cidade litorânea e onde o turismo, a natureza e a qualidade ambiental são seus principais atributos.
Cubatão, que embora até já esteja um pouco distante do nosso imaginário de convivência da população com os riscos da poluição ambiental, é um bom exemplo. Lá, além da poluição, havia também a contaminação do solo com o pó da China da Rhodia, além dos efeitos da poluição do ar e do risco de escorregamento das encostas pelos impactos na destruição da vegetação que protege a serra do mar pelos poluentes lançados na atmosfera.
Não podemos repetir os erros do passado como no caso de Cubatão. Após tragédias humanas e grande pressão, foi possível gradualmente transformar um caso de calamidade de saúde pública em exemplo de gestão ambiental, por meio de boas práticas de governança, isto é, todos os setores da sociedade – gestão pública, empresas, ONGs e população em geral – agindo juntos em prol da saúde e do meio ambiente. Devemos aprender com as lições do passado – repetindo as fórmulas de sucesso, e não os mesmos erros. De forma muito diferente dos dias atuais, nos anos 1980, tínhamos pouca experiência para enfrentar os riscos da poluição ambiental.
Em 2022, com inúmeras evidências científicas se acumulando sobre os riscos da contaminação ambiental e com as mudanças climáticas globais, não se pode dizer o mesmo. Novos tempos exigem novas atitudes – afinal, que futuro pretendemos deixar para nossos filhos e netos? As novas gerações agradecem.
Por Júlio Barboza Chiquetto e Ivan Carlos Maglio