Em São Sebastião, uma lei municipal aprovada em setembro de 2022 acendeu um debate sobre a preservação das praias e o impacto do comércio ambulante. A Lei nº 2925, proposta pelo vereador André Luiz Rocha Pierobon, alterou as normas de uso de espaços públicos no município, modificando a Lei nº 2.494 de 2017, que regulamentava o comércio ambulante. A nova legislação flexibilizou o uso desses espaços, permitindo a instalação de guarda-sóis e cadeiras desocupados, além de liberar o uso de carrinhos de ambulantes com publicidade patrocinada. Para muitos, como a Sociedade Amigos do Bairro da Praia da Baleia (SABALEIA), uma das associações mais antigas de São Sebastião, fundada em 1987, a lei ameaçava diretamente a integridade ambiental e a experiência dos frequentadores das praias.
A SABALEIA tem uma longa história dedicada à defesa ambiental e ao ordenamento da Praia da Baleia. A associação trabalha em colaboração com a comunidade para garantir o ordenamento, a limpeza e a proteção da praia. Com projetos de conscientização ambiental, a SABALEIA adota medidas fundamentais para manter a qualidade da experiência dos frequentadores e a integridade dos ecossistemas, assegurando que o espaço natural seja respeitado e conservado.
Entre os críticos à nova regulamentação está Heloneide Pereira, que trabalha como ambulante há mais de 30 anos na Praia da Barra do Sahy. Heloneide é conhecida por ter uma das barracas mais tradicionais da cidade, representando a cultura local. Ela defende a importância de preservar o trabalho dos comerciantes locais e se preocupa com o impacto de grandes marcas nas praias: “Não sou a favor de empresas ocuparem as praias. É o pouco que nos resta. Já que a vista da praia já nos tiraram com empreendimentos à beira-mar, agora querem tirar também o nosso espaço de trabalho.” A opinião de Heloneide reflete as preocupações de muitos trabalhadores locais, que temem que a presença de grandes marcas ameace tanto o sustento dos ambulantes quanto a preservação da cultura e identidade da comunidade.
O veto inicial do prefeito Felipe Augusto à lei, justificando que a exploração das praias poderia restringir o uso comum e prejudicar o ambiente, foi rejeitado pela Câmara Municipal, permitindo que a legislação fosse promulgada. A medida levantou questionamentos sobre o futuro das praias de São Sebastião, particularmente nas regiões mais preservadas, como a Praia da Baleia, onde a SABALEIA atua ativamente na proteção e no ordenamento do espaço.
A ação direta de inconstitucionalidade contra a lei foi liderada pela SABALEIA, com o apoio de outras associações de moradores, incluindo a Federação Pró-Costa Atlântica, Renova Camburi, SAMJU de Juquehy e Samarê de Maresias. Essas entidades, que defendem as praias mais frequentadas de São Sebastião, alegam que a lei fere a separação dos poderes, pois foi de iniciativa de um vereador, responsabilidade que, em regra, cabe ao Poder Executivo. Em uma decisão anterior, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reforçou que regulamentar o uso de espaços públicos, como o comércio ambulante, é uma competência exclusiva do Executivo, destacando a inconstitucionalidade da norma.
Além disso, a lei permitia a transferência de licenças de ambulantes para pessoas que não são da família, facilitando a venda dessas permissões. Esse ponto é especialmente preocupante para as associações, que argumentam que a flexibilização pode prejudicar o comércio local ao permitir que terceiros, sem vínculo comunitário, explorem essas licenças de forma indiscriminada, desconsiderando a preservação das praias.
A associação destaca que cada praia de São Sebastião possui uma capacidade de carga – um limite específico de uso para que os impactos ambientais sejam controlados. Ignorar essa capacidade é comprometer a saúde dos ecossistemas e a qualidade de vida dos moradores e visitantes. Além disso, a chegada de novas empresas e o aumento do comércio patrocinado podem intensificar a pressão sobre o espaço público, favorecendo o comércio de forma desordenada. Dados do Instituto Oceanográfico da USP revelam que cerca de 80% do lixo encontrado nas praias brasileiras é composto por plásticos, frequentemente relacionados a atividades comerciais mal gerenciadas. Essa poluição compromete a biodiversidade marinha e restringe o acesso ao lazer gratuito.
Para Fernanda Carbonelli, advogada responsável pela ação judicial, é essencial que empresas e anunciantes respeitem as características e limitações de cada praia, atuando de maneira consciente e colaborativa. “Queremos que a lei prestigie o profissional que já está estabelecido na comunidade, que respeita a praia e nos ajuda a cuidar dela. A abertura de brechas para muitas vagas, sem respeitar a capacidade de carga, junto à instalação de propagandas nas praias, com cadeiras e guarda-sóis não ocupados e sem limitação de tempo e espaço, restringe o uso de um bem que é de uso comum do povo, transformando o comércio ambulante em comércio perene”, afirma Carbonelli. “Este tipo de lei, da forma proposta, é danosa até mesmo ao ambulante, pois afugenta o turismo de qualidade e degrada a paisagem natural de um município que abriga o maior remanescente florestal da Mata Atlântica, o Parque Estadual da Serra do Mar, que ocupa mais de 70% do território de São Sebastião.”
Além disso, a associação defende que os próprios patrocinadores, ao exibirem suas marcas em carrinhos e cadeiras, também são corresponsáveis pelo cumprimento das leis de ordenamento e pela proteção ambiental. Essas empresas precisam ser parceiras na preservação das praias e devem ter uma atuação responsável, que contribua para o ordenamento e respeite os limites estabelecidos para cada área.
A decisão acabou sendo suspensa em caráter liminar pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), mas a Câmara recorreu, levando o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em setembro de 2024, o STF confirmou a inconstitucionalidade da lei, reforçando que a ocupação desordenada das praias e o uso comercial predatório violam o direito de uso comum da população e ameaçam a preservação do meio ambiente. O TJ-SP também destacou que a legislação apresentava um “vício formal subjetivo”, pois representava uma invasão do Legislativo na esfera executiva. Segundo o ministro Cristiano Zanin, a norma ultrapassa a competência da Câmara Municipal e invade a responsabilidade do Executivo. “As regras referentes ao desempenho de atividades de interesse da comunidade, tais como a permanência de cadeiras e guarda-sóis no espaço público, ou mesmo o exercício da atividade de comércio ambulante por preposto e não por seu titular, devem ficar a cargo do Poder Executivo”, afirmou Zanin em sua decisão.
O TJ-SP acrescentou que, ao não se limitar a traçar diretrizes, mas ao definir o “como” da ocupação do espaço público, a lei da Câmara assumiu responsabilidades administrativas típicas do Executivo. “A lei objurgada não se limitou a traçar diretrizes para que o município gerencie ou mesmo fiscalize a utilização dos espaços públicos, mas dispôs sobre o ‘como’, assumindo atos de gestão e/ou organização, inclusive conferindo atribuições a setores próprios do Poder Executivo”, afirmou o desembargador Evaristo dos Santos.
O vereador André Pierobom, autor da lei, argumentou que sua proposta tinha como objetivo facilitar a vida dos ambulantes, que atualmente são obrigados a retirar os carrinhos das praias ao final de cada dia. Segundo ele, essa tarefa, especialmente difícil na alta temporada, justificaria a permissão para manter cadeiras e estruturas nas praias de forma mais permanente.
Em nota, a Prefeitura de São Sebastião afirmou que “sempre esteve confiante” no julgamento pela inconstitucionalidade da lei, e que agora a lei municipal de 2017, que organizou e padronizou o trabalho dos ambulantes, voltará a ter plena vigência. A prefeitura destacou que essa norma anterior visa um ordenamento que favorece tanto o comércio local quanto a preservação das praias.
Luiz Attili, presidente da Federação Pró-Costa Atlântica, celebrou a decisão, destacando que a medida evitou consequências “desastrosas” para o ambiente e o equilíbrio econômico da região. Segundo ele, a decisão é um passo importante para ampliar a proteção das praias e evitar que grandes marcas transformem os espaços naturais em locais de exploração comercial desordenada.
Carbonelli observa que a experiência de cidades como Búzios e Paraty mostra ser possível regular o comércio nas praias de forma equilibrada, beneficiando a todos sem prejudicar o ambiente. “Precisamos garantir que a Praia da Baleia e outras praias de São Sebastião continuem a ser espaços bem cuidados, onde o comércio respeite a natureza e os direitos das comunidades locais. A instalação de estruturas fixas e propagandas precisa obedecer critérios que priorizem o respeito ao ambiente costeiro”, reforça. Ela menciona
que a implementação de regras rígidas em cidades como Búzios e Paraty resultou em praias mais limpas, organizadas e turisticamente atraentes, beneficiando especialmente os comerciantes locais com vínculo com a comunidade. Para ela, esses exemplos mostram que a regulamentação cuidadosa pode fortalecer a imagem turística dos destinos, atrair visitantes conscientes e garantir que o comércio local prospere de forma sustentável.
As associações de moradores esperam que a decisão do STF se torne um marco para a preservação das praias de São Sebastião, inspirando novas regulamentações que respeitem tanto o meio ambiente quanto os trabalhadores locais. A luta da SABALEIA e das outras entidades, em defesa das praias como bens de uso comum e contra o avanço do comércio predatório, destaca a importância de uma gestão responsável dos espaços costeiros, onde o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental caminhem juntos.
O desfecho desta ação judicial influencia diretamente a gestão das praias e reforça a necessidade de um equilíbrio cuidadoso entre o direito ao trabalho dos pequenos comerciantes e a preservação dos ecossistemas litorâneos. Com a lei municipal de 2017 voltando a vigorar, há uma expectativa renovada de que o município de São Sebastião adote normas que protejam as praias contra intervenções que comprometam o meio ambiente e que priorizem o comércio local, garantindo um turismo sustentável e o respeito aos recursos naturais que tornam a região única.
Por jornalista Poio Estavski